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Discurso não é bicho de sete cabeças

Discurso não é bicho de sete cabeças

(João Dino Francisco Pereira dos Santos)

RESUMO

Este artigo é voltado a profissionais das mais diversas áreas, que, em algum momento do trabalho cotidiano, precisem escrever discursos, quer seja na realização de homenagens, quer seja no debate de temas relevantes da vida nacional. Queremos compartilhar a experiência na preparação de candidatos a Consultores Legislativos, que,embora tivessem conhecimento a respeito dos temas solicitados pelas Bancas, encontravam dificuldades na confecção de exórdios e perorações, bem como na inserção de figuras de retórica. O artigo oferece, portanto, oportunidade de se lidar com esses instrumentos fundamentais para conferir ao texto argumentativo o recorte do discurso.

Boa parte das pessoas costuma associar a capacidade de produzir discursos acerto pendor para o domínio da oratória. Embora seja difícil negar que a construção do discurso requer percepção mais próxima da literatura, entendemos plenamente factível ensinar as pessoas a desenvolverem a capacidade de elaborar exórdios e perorações,bem como de utilizar os instrumentos característicos do discurso, tais como, a metáfora,a anáfora, o anticlímax, a antítese e outros recursos estilísticos.

No mundo pós-moderno, é preciso ensinar essas técnicas aos especialistas das mais diversas áreas, porque tem-se tornado comum demandar a elaboração de discursos sobre temas específicos. Assim, nosso objetivo é oferecer algumas pistas para dar ao texto argumentativo a roupagem necessária para transformá-lo numa peça de oratória. A esse respeito, deve-se compreender que o discurso é feito para ser lido com a devida impostação de voz, ritmo e vivacidade. Daí porque a importância de pensar nesses três aspectos na hora de escrever, ou seja, como toca aos ouvidos o texto lido?

O discurso não perde qualquer dos atributos da dissertação, apenas tem argumentação talvez menos sofisticada, porque precisa convencer a audiência, angariar o apoio para determinada decisão. Quem ouve, ouve mais com o coração e nem sempre consegue compreender cálculos ou raciocínios complexos. Coloque-se, portanto, no lugar de quem ouve e perceba que atitude você toma diante do político enfadonho e chato. Veja quem lhe convence melhor e por que isso ocorre.

Há dois movimentos importantes quando pensamos na audiência, sobretudo na construção dos exórdios, o chamamento inicial, que tem a finalidade de conquistar o público e apresentar a tese do orador. Para Mattoso Câmara, é preciso ter em mente duas características, a saber: 1) etos, ou seja, o caráter que o orador deve parecer ter, mostrando-se “sensato, sincero e simpático”, e, igualmente, o caráter do auditório, ao qual o orador deve adaptar-se; 2) patos, ou seja, “a ação do orador sobre as paixões, os desejos e as emoções do auditório, para facilitar a persuasão. Daí vem a palavra “patético”.

Por isso, esse mestre da Lingüística ensina que há três momentos no exórdio:“primeiro, tomamos posse do ambiente, depois, focalizamos claramente para nós e para os ouvintes o nosso objetivo, para, então, fixarmo-nos nesse objetivo o auditório e fazêlo comungar com os pensamentos que vamos desenvolver”. Para isso, é válido, comoveremos adiante, criar estrutura típicas do exórdio, com referência a passagens literárias,provérbios, citações e ditos populares.

A respeito da macroestrutura do discurso, é válido ressaltar algumas estratégias ensinadas pelos manuais de retórica, quais sejam: a)desdobramento cronológico: a mulherna sociedade de ontem e de hoje; b)agrupamento pela associação lógica: razões econseqüências da privatização do setor de telecomunicações; c)fixação de ponto de maior interesse, do qual se desce gradativamente: Globalização, Alca e Mercosul;d)disposição da matéria em forma de problema proposto ao auditório: Como combater a violência? É no corpo do discurso que o orador deve fazer inserções de figuras de retórica, capazes de dar ao texto ritmo e eufonia.

É possível, também, pensar em algumas alternativas para construir a peroração, ou seja, a)sumário rápido e conciso dos pontos principais levantados; b)apelo a que se tome determinada atitude; c)combinação das duas estratégias. A esse respeito, cabe observar que, no mundo contemporâneo, não basta ao orador se concentrar em críticas, porque o público exige propostas e estratégias para colocá-lasem prática. Porisso, o discurso precisa estar direcionado à apresentação de um objetivo maior, como a defesa de um projeto de lei, por exemplo.

A título de ilustrarmos a teoria na prática, oferecemos aqui alguns exemplos de exórdios que podem ser adaptados a diversos temas e assuntos. A idéia é dar uma pista aos discurseiros de primeira viagem para irem gradativamente percebendo os artifícios da retórica até produzirem seus próprios exórdios sem qualquer auxílio.

1) Sr. Presidente,

O conhecimento humano funda-se sobretudo nas lições oferecidas pelos livros e pelo mundo dos doutos. Entretanto, não raro, a sabedoria popular nos traz reflexões e ensinamentos sobre a vida, em provérbios, ditos e ditados, que merecem atenção e credibilidade.Entre esses ensinamentos, destaque-se o de que não se pode tentar corrigir um erro cometendo outro. A violência a que se lançam latrocidas, seqüestradores, homicidas é um erro atroz, insanidade, mas a implantação da pena de morte seria ainda pior, porque o Estado se igualaria ao criminoso.

2) A democracia moderna, Senhor Presidente, conseguiu dar conta de um dos desafios mais difíceis para a organização política e social da sociedade e do Estado,porquanto estabeleceu como pressuposto básico o princípio de prevalência suprema da vontade da maioria. Entretanto, como nos ensinou o jovem Tocqueville,em A Democraciana América, esse pressuposto, esse princípio básico das sociedades modernas muitas vezes inibe e oprime as minorias, porque, apesar de livres, não integram o grupo formador do poder. Com efeito, a proposta do nobre Senador X, pode contemplar o que parece ser o anseio da coletividade, mas, se aprovada, colocará em jogo as liberdades e garantias individuais asseguradas na Carta Magna….

3) Senhor Presidente, a Carta Magna de 1988 – ou a Constituição Cidadã, como a chamava o saudoso Deputado Ulysses Guimarães – conferiu ao Congresso Nacional, à Câmara e ao Senado, não só o poder legiferante, mas também o fiscalizador. Sem dúvida, esses são os papéis mais relevantes que nós, como representantes do povo e dos Estados da Federação, temos a desempenhar no Parlamento, mas há, decerto, tarefa que nos parece de igual importância às duas Casas Legislativa: somos foro de debate das questões nacionais, que atingem tanto o plano coletivo quanto individual.

Por isso, entendemos que, no atual quadro de violência, esta Casa, assim como a Câmara, tem o dever de debater o problema e oferecer soluções tangíveis para conseguirmos, em uma só voz, em um só sopro, empurrar esta nuvem pesarosa que paira sobre a tranqüilidade da Nação

4) Estamos inquietos… preocupados e alarmados, Senhor Presidente, com dados publicados recentemente por instituição do mais alto respeito e credibilidade: o Instituto Allan Guttmacher. Estamos chocados e pensativos diante de revelação estarrecedora: mulheres que cometem aborto em países onde inexiste a legalização dessa prática têm 275 vezes a mais de chance de morrer do que em países onde o aborto é legalizado. Por isso, sem qualquer dúvida ou hesitação, o Brasil precisa rever a legislação que regula esse tema.

É válido, também, desenvolver o recurso de inserir deliberadamente algumas figuras de retórica ao longo do texto que pretendemos converterem discurso. Naprática, costumo dizer aos alunos para colocarem pelo menos uma figura de retórica em cada parágrafo, ou seja, se afirmamos alguma coisa, apresentamos no máximo dois argumentos de sustentação, para, no terceiro movimento, utilizar uma anáfora, por exemplo. Vejamos, portanto, alguns recursos:

a) Anáfora, a repetição de uma ou mais palavras no início de diferentes frases: não quero, não posso, não devo; estamos inquietos, estamos preocupados, estamos alarmados; o povo está atirado à própria sorte, atirado ao próprio destino.

b) Antítese, colocação lado a lado, de idéias opostas: Quem matou Monsenhor Romero? A injustiça o matou porque ele queria justiça; o ódio o matou porque ele queria o amor; a mentira o matou porque ele queria a verdade.

c) Apóstrofe invocação ou interpelação de um ouvinte, ou leitor da mensagem, ou ainda invocação de pessoas ausentes: E nós, Senhor Presidente, o que devemos fazer? Esta Casa, Senhoras e Senhores Deputados, não pode, nem deve aprovar a legalização irrestrita do aborto; O saudoso Deputado San Tiago Dantas, decerto, veria realizado o sonho da democracia no processo eleitoral vivido pelo Brasil de hoje.

d) Clímax ou gradação, seqüência de palavras cujo significado vai-se intensificando

ou diminuindo gradativamente: A violência oprime, ameaça, tira a liberdade do povo; A droga é estrada sem fim, deserta, horrenda e nua; a fraternidade abraça, acolhe e acalanta o próximo.

e) Disfemismo, expressão de uma idéia de forma brutal: precisamos dar um coice na violência tão forte quanto ela mesma; Nossos computadores eram carroças, nossos carros eram calhambeques, mas eram nossos, produzidos aqui.

f) Hipérbole, exagero proposital das coisas: instituição da mais alta credibilidade; se aprovarmos esta lei, vamos chorar pelo resto de nossas vidas; há repúdio contra a globalização nos quatro cantos do planeta.

Com base nas observações anteriores, procure identificar no discurso abaixo, de nossa autoria, o que é figura de retórica. Depois experimente pegar um texto argumentativo e, gradativamente, inserir os recursos necessários a transformá-lo em peça de oratória. De início, talvez seja um pouco difícil, mas, logo logo, você verá que fazer discurso não é bicho de sete cabeças.

Exemplo de Discurso

a)Sra. Diretora,

Srs. Pais e Responsáveis,

Minhas queridas crianças do Jardim III,

Creio que todos nós aqui já ouvimos falar da história da Branca de Neve e os Sete Anões, não é mesmo? Já ouvimos falar de muitas outras histórias também: Pinóquio,

O Gato de Botas, O Sítio do Picapau Amarelo. Mas o que essas histórias de fadas e bruxas, príncipes e princesas têm de tão forte e profundo a ponto de tocar o coração de todos, com encantamento e admiração? O que essas histórias têm de tão poderoso a ponto de passarem de geração a geração, de século a século?

Talvez seja difícil encontrar a razão exata para esse fenômeno, mas o certo é que nós adultos contamos para nossos filhos as mesmas histórias recitadas por nossos pais e avós. E vocês, meus pequenos, também vão contá-las para os filhos no futuro. Sabem por quê? Porque essas histórias nos ensinam, de uma forma encantadora, lições sobre o caráter, a personalidade e os sentimentos do ser humano, tão inquieto hoje como há duzentos anos, tão carente de explicação hoje como daqui a cem anos.

Os contos de fadas nos permitem entender o coração humano e, apesar da inveja da madrasta de Branca de Neve ou das mentiras de Pinóquio, trazem sempre a lição da ternura, do amor ao próximo. E o que me parece mais importante, a lição do otimismo, da luta por dias melhores e da crença de que caminhamos em busca de mundo mais justo.

No planeta das fadas e duendes, há sempre um ensinamento a brotar de cada episódio. Da dedicação do velho Gepeto a Pinóquio extraímos o ideal da entrega de cada pai ao próprio filho, porque o elo que nos une a estes pequeninos jamais se quebra, jamais se rompe. Nossos filhos são nossos filhos para sempre e, não importa os desdobramentos da vida, estaremos permanentemente de braços abertos para acolhê-los e afagá-los.

Para nós, estes pequeninos, que hoje concluem o Jardim III, serão pequeninos a vida inteira. Com vinte, trinta ou quarenta anos, continuaremos a vê-los como a criança  de quem trocávamos a fralda, o menino de quem ouvíamos o balbuciar das primeiras palavras, a menina de quem víamos atentos os primeiros passos. É exatamente esta sensação de tê-los como eternas crianças que nos impõe mais responsabilidade.

No complexo mundo de hoje em que vemos famílias se desagregarem em conflitos e contradições e até em crimes bárbaros, precisamos recuperar e reafirmar cada vez mais o sentimento de fraternidade e amor aos nossos filhos; precisamos assumir de peito e coração abertos o papel de pai e mãe. Com afago e carinho, repreensão e, às vezes, castigo, devemos cumprir a tarefa sublime de guiar esta linda gente pequenina para o caminho do bem e da luz.

Se compreendermos a gratidão da Branca de Neve aos Sete anões, teremos entendido, também, o valor de educar os nossos filhos, de vê-los caminhar e construir o próprio destino. Hoje eles concluem a primeira etapa do majestoso processo da aprendizagem. Muitas outras etapas virão e em todas elas recordaremos desta primeira e veremos nítido e bem claro cada um dos rostinhos a nos dizer obrigado. Que todos vocês, pais, mães, responsáveis e direção, recebam meu abraço fraterno!

Parabéns pela linda festa!

Muito obrigado!

Referências

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[1] O presente trabalho foi apresentado originalmente no Seminário Internacional de Assessoramento Institucional no Poder Legislativo, realizado pela ASLEGIS / Associação dos Consultores Legislativos e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados  em  Brasília no ano de 2007 e publicado no  Cardernos Aslegis – Vol. 1, N 1, Revista Eletrônica, do mesmo ano.

[2]  João Dino Francisco Pereira dos Santos é Mestre em Lingüística pela UnB, Consultor Legislativo da CLDF e Assessor do Senador Marconi Perillo, Primeiro Vice-Presidente do Senado Federal e Ex-Governador de Goiás.

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